Em publicação científica, presas e predadores se confundem

Países de origem dos autores responsáveis por artigos em periódicos predatórios. Mohrer et. al


O Brasil é o 13º país que mais inclui trabalhos científicos sobre biomedicina em periódicos internacionais considerados “predatórios”, que cobram para aceitar artigos e publicam-nos sem exigir qualidade mínima ou submetê-los a um processo adequado de revisão pelos pares. De um levantamento de mais de 1,9 mil artigos lançados em 2016, em mais de 200 desses periódicos, vinte e sete, ou 1,4%, tinham, como principal autor ou autor correspondente, um brasileiro.

Os países que dominam esse “ranking negativo” da ciência são Índia (27%), EUA (15%), Nigéria (5%), Irã (4%) e Japão (4%). O levantamento, encabeçado pelo pesquisador canadense  David Mohrer,  do Ottawa Hospital e da Universidade de Ottawa, fundamenta  um duro artigo de opinião publicado na edição desta semana na revista Nature.

Para os autores, o principal achado da pesquisa foi que, ao contrário do que a comunidade científica supunha, a clientela dos editores predatórios não se concentra nos países de renda média ou baixa. “Mais da metade dos autores correspondentes vêm de países de renda média-alta ou alta, segundo a definição do Banco Mundial”, escrevem, apontando que a Universidade Harvard está entre as oito maiores fontes de artigos para os periódicos predatórios. Na tradição científica, o “autor correspondente” de um artigo é o responsável pela supervisão da qualidade do trabalho.

“Da parcela de 17% dos artigos da amostra que declararam fonte de financiamento, a mais frequentemente citada foram os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) dos Estados Unidos”, prossegue o ensaio. “Os EUA produziram mais artigos em nossa amostra do que qualquer outro país, exceto a Índia”.

A presença nos periódicos predatórios, em relação à contribuição de cada país para a ciência mundial como um todo, varia bastante. Os Estados Unidos, por exemplo, respondem por 26% de todas as publicações científicas sobre medicina no mundo, de acordo com a base de dados SCImago, e por 15% da amostra de artigos em periódicos predatórios. A Índia tem 2% das publicações mundiais, e domina a lista dos predatórios, com 27%. Já o Brasil, também com 2% das publicações mundiais, fica com 1,4% das predatórias.



No Nature Index, que contabiliza apenas publicações em periódicos de boa reputação, os EUA aparecem em primeiro lugar, na categoria de Ciências da Vida, e o Brasil, em 22º. A Índia entra em 19º.

“Atrocidades”

A equipe responsável pelo levantamento, formada por cientistas do Canadá, França e Reino Unido, selecionou a maior parte da amostra usada de publicações suspeitas a partir da lista de periódicos “possivelmente, potencialmente ou provavelmente” predatórios que era mantida online, até o início deste ano, pelo bibliotecário americano Jeffrey Beall.

Diversos críticos das práticas predatórias de publicação preferem descrever os cientistas que se valem desses veículos como vítimas ingênuas de editores inescrupulosos, mas o grupo de Mohrer não mede palavras: “Coletivamente, os artigos que examinamos eram atrozes”, escrevem. Os trabalhos foram avaliados de acordo com checklists e padrões de qualidade adequados para cada tipo – ensaios clínicos, revisões sistemáticas, etc.

“Embora a aderência às regras, e sua imposição, se dê de modo irregular, mesmo nos periódicos conceituados, a qualidade da informação em nossa amostra foi muito pior”, descrevem. “Os artigos eram particularmente deficientes na descrição dos métodos de estudo, resultados e registro”. Acrescentam: “os artigos em nossa amostra falham, de modo consistente, em fornecer informações essenciais para que os leitores possam avaliar, reproduzir ou desenvolver as descobertas”.

Desperdício

O ensaio na Nature aponta o “desperdício” trazido pelas publicações predatórias, apontando que os artigos examinados trazem, coletivamente, dados referentes a mais de 2 milhões de pessoas e mais de 8 mil animais de laboratório.

“Extrapolando, presumimos de que pelo menos 18 mil pesquisas biomédicas financiadas estejam publicadas em periódicos mal indexados e cientificamente questionáveis. Pouco desse trabalho ajudará a ciência a avançar”.

Para os autores, isso representa um grave problema ético: “Pessoas que concordam em participar de estudos esperam que sua participação beneficie pacientes no futuro.  O uso de animais em pesquisa biomédica é justificado pela pressuposição de que os experimentos trarão informações valiosas”.


A peça de opinião termina exortando as agências de fomento e os responsáveis processos de promoção dentro da carreira acadêmica a vigiar e reprimir pesquisadores que se valem de periódicos predatórios. “Ao buscar promoção ou financiamento, pesquisadores deveriam incluir a declaração de que seus currículos estão livres de publicações predatórias”, aponta o texto.

"O trabalho de Moher et al levanta um fato novo e muito preocupante sobre os periódicos predatórios. Sempre acreditamos que os autores que publicam nessas revistas fossem de países em desenvolvimento, com menor acesso à informação", disse Natália Pasternak Taschner, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, comentando os resultados. "Este trabalho mostra que não, muitos autores são de países desenvolvidos e com financiamento de instituições públicas reconhecidas. Ficam então algumas questões: quem publica nessas revistas, o que motiva autores a fazê-lo, como evitar que isso aconteça".

"Barrar promoções e planos de carreira para aqueles que publicam nestes periódicos é uma boa opção, assim como criar plataformas que denunciem estas revistas", acredita. "Por que devemos nos preocupar com isso? Porque a mera existência destas revistas encoraja uma ciência mal feita e pouco rigorosa, com desperdício de verbas, voluntários e animais de pesquisa. Se o pesquisador sabe que pode fazer um trabalho mal feito e terá como publicar, o mercado negro cresce".

Além do ensaio na Nature, o grupo publicou seus dados na plataforma Open Science Framework.

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