Jornada dupla no Pint of Science!



Neste ano, participei duas vezes do festival Pint of Science, em Campinas e São Paulo, falando no interior sobre fake news e, na capital, sobre fale news e jornalismo de saúde (esta última participação apareceu de última hora). Esses eventos ao vivo sempre me deixam com a impressão de que fui menos claro e coerente do que deveria, em parte porque certamente me comunico melhor por escrito, em parte porque provavelmente sou mesmo meio incoerente e obscuro, ainda mais com três chopes na cabeça.

Então, para quem assistiu e talvez tenha ficado curioso, já discorri mais longamente (e, espero, com maior propriedade e coerência) sobre os assuntos de que falei no Pint nestes textos, sobre notícias falsas (aqui e aqui e neste vídeo) e cobertura de saúde (aqui, aqui e, de modo indireto, aqui). Felizmente, minhas duas participações no festival não foram solo, e os colegas Angela Pimenta (em Campinas) e  Ruth Helena Bellinghini, Álvaro Pereira Júnior e Lúcia Helena de Oliveira (em São Paulo) seguraram a onda.

Um assunto de que tratamos ao final do evento em São Paulo foi a questão do "outro lado" no jornalismo de ciência/saúde. Como a note já estava chegando ao fim, não deu para ir muito fundo no tema, e por causa disso eu gostaria de sistematizar alguma coisa a respeito. O instituto de "outro lado" -- a busca pela opinião discordante ou divergente, quase uma cláusula pétrea da ética jornalística -- traz vantagens e riscos para o jornalismo em geral, e o científico, em particular. Queria terminar isto aqui propondo a seguinte lista:

Vantagens:

Humildade: o repórter pode ter certeza absoluta de que está na linha certa, de que tem todos os fatos, de que o eixo narrativo da matéria é esse... até que uma conversa com uma fonte dissonante vira tudo de ponta cabeça. Pode acontecer, acontece e sem a busca pelo "outro lado" dificilmente aconteceria.

Cortesia: se a matéria está caminhando no sentido de deixar alguém em situação embaraçosa, é educado ouvir o que a pessoa tem a dizer.

Completude: dificilmente se consegue uma história bem amarrada, sem pontas soltas ou indefinições desnecessárias, sem a voz de todos os (ou do maior número possível dos) envolvidos.

Credibilidade: é mais fácil o público levar a sério uma narrativa em que todas as partes envolvidas têm a oportunidade se manifestar.

Riscos:

Falsa equivalência: um relatório do IPCC ou uma revisão Cochrane têm mais credibilidade do que a opinião de um professor isolado ou de um instituto de fundo de quintal. A aplicação burocrática do princípio do "outro lado" traz o risco de não deixar isso claro. No caso da ciência, isso é ainda mais grave porque, em geral, a opinião que merece mais peso surge por meio de vozes institucionais (estudos, relatórios), enquanto que as dissidências são... pessoas. E a palavra de uma "face humana" sempre soa mais simpática ao leitor/espectador do que a voz impessoal de um órgão oficial qualquer.

Falsa controvérsia: existe uma ampla literatura (começando por Merchants of Doubt, mas indo além) sobre as estratégias de relações públicas de defensores do indefensável, em criar a aparência de dúvida ou controvérsia científica onde nenhuma existe: transformar um simulacro de controvérsia científica em uma controvérsia social real. A relação entre tabaco e câncer foi o caso mais famoso, mas há outros, como o "debate" evolução/criação. A busca mecânica pelo "outro lado" muitas vezes faz com que o jornalista se torne, inadvertidamente, cúmplice desse processo.

Lavar as mãos:  é relativamente simples construir uma narrativa na base do "ele disse, ela disse" e deixar por isso o mesmo -- o leitor, atarantado e a ver navios, que decida quem tem a melhor versão dos fatos, "ele" ou "ela". Às vezes isso pode ser até inevitável, mas "ouvir o outro lado" não deveria substituir o trabalho de investigação e o dever de apresentar a melhor versão da verdade disponível até a hora do fechamento.

Ponto cego:  este é, de certa forma, o inverso do risco da "falsa controvérsia", quando se presume que um assunto, na verdade altamente duvidoso, não requer contestação. De "milagres" reconhecidos pelo Vaticano à mais recente "cura da celulite", a relação é imensa.

Todo jornalista, no fim, tem um "outroladômetro" que o ajuda a intuir quando é útil ou necessário procurar a divergência. Ninguém sai por aí ouvindo terraplanistas cada vez que a Nasa lança um foguete, e ninguém (espero) divulgaria um estudo dizendo que goiabada-cascão cura câncer, sem pedir a um pesquisador independente que avaliasse o trabalho antes.

O princípio de ouvir todas as partes legítimas envolvidas numa controvérsia real é sólido, mas em ciência, especialmente, a tarefa de detectar quais as partes legítimas e quais as controvérsias reais pode desafiar a intuição fundada no senso-comum.

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