Por uma indignação mais seletiva



No universo das redes sociais, "indignação seletiva" virou sinônimo de hipocrisia, mas eu gostaria de sugerir que, tomada ao pé da letra, esta expressão define algo de que precisamos com urgência: um senso de indignação que selecione melhor seus alvos. A histeria coletiva em torno do "caso" MAM é apenas um exemplo, mas dá para citar vários outros.

Quem já habitava este Vale de Lágrimas nas últimas décadas do século passado talvez se lembre de dois importantes slogans da era pós-ditadura, quando forças então de esquerda e então racionais e éticas (a saber, o velho PT e o núcleo peemedebista que viria a criar o velho PSDB) disputavam o poder com os herdeiros corruptos e retrógrados do entulho autoritário, como o PFL (que virou DEM) e o partido do Maluf (que mudou tanto de nome que não sei mais como se chama). Esses slogans eram: "Não podemos nos dispersar" e "Temos de nos indignar".

A primeira dessas exortações pode soar, dependendo das inclinações particulares do ouvinte, como um apelo à solidariedade social ampla, um chamamento para que os defensores da democracia se mantenham atentos ou uma convocação, um tanto quanto fascista, para uma espécie de estado de patrulha permanente.

De qualquer modo, ele é largamente impraticável. Afinal, as pessoas têm de cuidar da vida, criar os filhos e regar as plantas. Mobilização política é, assim como a música ou a literatura, uma vocação: todo mundo se diverte com isso de vez em quando, mas poucos têm a inclinação, a motivação e a semente de talento necessários para se dedicar continuamente a coisas assim.

Já "Temos de nos indignar" é algo mais sedutor e, por que não dizer, insidioso, já que apela diretamente ao ego: indignação é um sentimento que traz o duplo benefício de permitir a uma pessoa sentir-se superior aos demais e, ao mesmo tempo, acreditar que está, humildemente, servindo à comunidade com seu senso de importância pessoal inflado. É uma injeção dupla de vaidade na veia, e às vezes se esgota aí -- todos nós tendemos, vez ou outra, a confundir "sentimento correto" com "ação correta" .

Mas quando se desdobra em ação concreta, a indignação muitas vezes alimenta a "ira santa", o prazer cruel de prejudicar "quem merece", de sentir-se autorizado a fazer o mal "por uma boa causa".

A língua inglesa tem uma expressão,  self-righteousness, às vezes traduzida como "santimônia", que se refere a um senso de superioridade moral derivado da convicção de que a visão e o comprometimento ético que se tem são superiores aos da população em geral. A aparência de  self-righteousness muitas vezes é produzida por hipocrisia, mas quando o sentimento realmente existe, seu poder é comparável ao de uma droga estimulante: que clareza de visão!que senso de propósito!

Autêntica ou hipócrita, no entanto, a santimônia é contagiosa (ainda mais nestes tempos de redes sociais): como ninguém quer parecer menos ético que o santarrão da vez, logo os santarrões multiplicam-se; e, não raro, surgem os leiliões de pureza, onde cada candidato tenta superar os demais na estritura de seu código moral. Se a regra original pedia que um camelo passasse pelo buraco de uma agulha, ao final do leilão haverá quem fale em baleias jubartes, ou planetas.

Não estou tentando desqualificar a indignação em si. Apenas aponto para o fato de que se trata de uma emoção psicologicamente sedutora, que indignar-se pode muito bem acabar se tornando um fim em si mesmo, seja pela embriaguez de mergulhar no "pensamento correto", seja pelas vantagens, muitas vezes mesquinhas e egoístas, que traz ao ego. E que, assim como um viciado em drogas ou álcool pode se deixar manipular por quem promete fornecer a próxima dose, o barato da indignação também vicia e, no limite, torna-nos manipuláveis.

Então, voltando ao título: por uma indignação mais seletiva. Pelo exercício da temperança diante da tentação de mais um pico de adrenalina, de mais uma injeção de santimônia prometidos a quem compartilha um "ABSURDO!" no Facebook ou põe o nome num novo abaixo-assinado EM ALL-CAPS. Reajamos menos como camundongos com eletrodos no centro de prazer do cérebro e mais como os seres humanos que aspiramos a ser. A capacidade humana de reagir coletivamente contra a injustiça é preciosa demais para que a desperdicemos assim.

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