Suplemento alimentar e a fosfogringa

A categoria "suplemento alimentar" é um monstrengo inventado pelo Congresso americano nos anos 90 para acomodar o lobby de companhias que queriam poder vender pílulas e cápsulas prometendo benefícios de saúde sem, no entanto, ter de se submeter a incômodos burocráticos como oferecer prova científica de que o produto é útil e seguro.

O início do século 20 viu o auge da era do "remédio de patente", misturas misteriosas, muitas vezes à base de álcool e drogas pesadas, vendidas livremente com a promessa de operar curas milagrosas. Se você acha que os pais de hoje exageram na ritalina, em 1900 as mães americanas ou britânicas que precisavam trabalhar fora davam a seus filhos o Xarope Calmante da Senhora Winslow, uma mistura de morfina, álcool e amônia. Bastava uma colher de sopa para nocautear os pequerruchos por várias horas.

No fim da década de 30, uma fábrica de remédios, também nos Estados Unidos, resolveu criar uma versão do antibiótico sulfanilamida que fosse agradável ao paladar infantil. A mistura incluía açúcar, caramelo, essência de amora -- e dietilenoglicol, um éter anticongelante e tóxico. Mais de cem pessoas morreram.

Eventos assim levaram à criação e posterior fortalecimento da FDA, o órgão do governo americano que serviu de inspiração para diversas agências pelo mundo, incluindo a brasileira Anvisa. As bases da agência são bem simples: antes de poder ser oferecido no mercado,  um produto que alegue ser eficaz contra algum tipo de doença precisa apresentar provas científicas competentes de que é seguro e funciona. 

A atuação da FDA e de suas agências coirmãs pelo mundo nunca foi pacífica: lobbies políticos vivem se articulando para criar exceções, como as que favorecem medicamentos homeopáticos e, em tempos mais recentes, os assim chamados suplementos. A homeopatia é assunto para outro dia, mas os suplementos tentam se escorar na alegação de que são ingredientes já presentes naturalmente na dieta humana, ou que vêm de fontes "naturais". 

Nada disso, na verdade, significa muita coisa: sal e colesterol LDL são parte natural da dieta, por exemplo, mas ninguém acha que tomar comprimidos disso vai lhe fazer bem. Quanto às supostas "fontes naturais",  o livro Do You Believe in Magic, do médico Paul Offit, traz a transcrição de um debate realizado no Congresso dos EUA entre David Kessler, representando a FDA, e o senador Orrin Hatch, cujas campanhas eram financiadas por empresas insuspeitas como Herbalife e Metabolfie, depois que a FDA mandou confiscar lotes de um óleo herbal. A tradução abaixo é minha:
HATCH: Que ameaças a FDA estava combatendo para usar tantos recursos e pessoal?
KESSLER: Senador, posso ler para o senhor as alegações feitas a respeito desse óleo. Elas começam com câncer.
HATCH: Lembre-se, a questão aqui é segurança.
KESSLER: Minha preocupação é quanto aos tipos de doenças para que esse óleo é promovido.
HATCH: Minha questão é: que prova vocês têm de que essa substância é insegura?
KESSLER: Este negócio está sendo promovido para um monte de doenças, de hipertensão a dermatite.
HATCH: Segurança, doutor, segurança! Eis a questão! Um cidadão americano corre mais risco de morrer do efeito adverso de um suplemento alimentar ou de uma droga aprovada?
KESSLER:  Senador, estou estupefato. O que o senhor acha que há nos medicamentos? Metade dos nossos produtos farmacêuticos vêm de plantas. Há produtos químicos nos medicamentos, e esses produtos são encontrados na natureza.
Os debates parlamentares americanos incluíram depoimentos de vítimas de um suplemento, que continha doses altas do aminoácido L-triptofano (também "natural"). Centenas de pessoas sofreram graves danos neurológicos, e mais de 20 morreram. Mas o lobby dos suplementos tinha mais dinheiro -- chegou a produzir um comercial de TV em que agentes do FBI invadiam o apartamento de Mel Gibson (!!) para confiscar um frasco de vitaminas.

Esse lobby levou o Congresso americano a definir uma categoria especial de produto farmacêutico, a de "suplemento alimentar", que foi deixada fora da jurisdição da FDA. O argumento que venceu foi o da liberdade do consumidor: basicamente, preservou-se o direito do cidadão de se deixar engabelar por comerciais que dizem que vitamina C cura gripe.

Escrevi tudo isso aí em cima para dar aos leitores um pouco de contexto sobre a decisão de dois "dissidentes" do grupo da fosfoetanolamina de São Carlos de produzir a molécula nos Estados Unidos como "suplemento alimentar", tal como noticiado pelo jornalista Herton Escobar. A verdade é que a lei americana sobre o assunto é frouxa, foi aprovada por meio de apelos desonestos à opinião pública e promovida por empresas que não tinham nenhum fiapo de evidência científica a apoiá-las; o fato de brasileiros optarem por beneficiar-se dela é algo que me abstenho de comentar.

Se a lei americana é frouxa e equivocada, a brasileira é omissa.  Em seu site, a Anvisa diz que sequer reconhece a categoria de "suplemento alimentar".O fato de as cápsulas estarem sendo fabricadas na Disneylândia regulatória dos EUA, mas direcionadas ao público brasileiro -- já devidamente "amaciado" para imaginar que essa substância é útil contra o câncer, graças a uma combinação de jornalismo abominável e covardia política -- talvez faça subir algumas sobrancelhas entre as autoridades responsáveis. Eu, pelo menos, gostaria de imaginar que sim.

Comentários

  1. Agora, mais do que nunca, fica a pergunta: por qual razão os governos federal e paulista estão, por meio de financiamento público a pesquisas caríssimas, impulsionando empreendimento privado, de caráter altamente questionável, de um "mero suplemento alimentar", conforme declarado pelos próprios "empreendedores".

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