"Fosfo Wars": um balanço até agora

A semana foi agitada no campo do que poderíamos chamar de "Fosfoetanolamina Wars", com os proponentes do uso da molécula no tratamento do câncer valendo-se de uma retórica dura para atacar, em audiência pública no Senado, os primeiros relatórios divulgados por cientistas independentes a respeito da qualidade das pílulas até recentemente produzidas em São Carlos (conclusão: péssima) e dos efeitos da "fosfo" quando utilizada contra culturas de células tumorais (conclusão: nulos ou pífios). 

Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal finalmente isentou a USP da obrigação de seguir fabricando e distribuindo a pílula, depois de o laboratório encarregado do serviço ter sido fechado. Parece um bom momento para fazer um balanço do caso, enquanto se aguardam os resultados dos testes em camundongos, também encomendados pelo governo. O texto que segue, portanto, é longo. Bem longo.

Até agora, o que se tem de concreto, a respeito da efetividade da "fosfo" contra o câncer, são os resultados publicados, positivos, de testes em cultura celular e em animais, feitos pelo grupo que defende a eficácia da substância, e os resultados, críticos ou negativos, dos testes em cultura celular realizados por laboratórios independentes. 

É importante notar que resultados positivos em laboratório e em modelos animais são necessários, mas estão longe, muito longe, de ser o suficiente para que se possa afirmar que um novo medicamento foi descoberto: um artigo famoso publicado em 2005 já apontava que boa parte da pesquisa biomédica tende, por uma série de fatores (incluindo os vieses psicológicos e interesses pessoais dos autores) a produzir falsos positivos, e um levantamento feito em 2014 indicava que menos de 8% dos estudos bem-sucedidos sobre terapias de câncer realizados em camundongos se traduzem em testes bem-sucedidos em seres humanos. Outro levantamento, este de 2007, mostra que menos de 5% das drogas "promissoras" para câncer que iniciam testes em humanos chegam a cumprir todas as etapas necessárias até se tornarem medicamentos registrados.

Jujubas

No fim, a principal fonte de apoio -- e de pressão política -- pró-"fosfo" não é a ciência, é a sensação de esperança e euforia produzida pelos depoimentos de pacientes que se consideraram curados durante os anos de distribuição irregular da pílula, e atribuíram a cura às cápsulas de São Carlos. 

Muito já se escreveu sobre a razão de a ciência médica não considerar relatos pessoais, não importa o quanto sejam apaixonados ou numerosos, como prova da efetividade de um tratamento. Eu mesmo já citei, em outro artigo, um exemplo histórico, dramático, dos perigos de se acatar cegamente a palavra de pacientes agradecidos. Não se trata, como um bocado de gente parece acreditar, de um mecanismo para impor dificuldades artificiais e enriquecer laboratórios: na verdade, os laboratórios adorariam poder pôr no jarro de jujubas o rótulo de "cura do câncer". Foi, na verdade, o que fizeram impunemente durante muito tempo, até a regulamentação chegar.

A história mostra que o esquema funcionaria muito bem: as pessoas que comessem jujubas e sobrevivessem à doença dariam depoimentos estelares. As que morressem não estariam mais por aqui para reclamar,  e seus parentes ficariam achando que ou o tratamento com jujuba tinha começado tarde demais, ou que simplesmente tinham sido azarados. Ninguém iria culpar o pobre velhinho vendedor de jujubas por nada: afinal, ele é um senhorzinho tão atencioso, tão simpático. 

O que impede que a medicina degenere num mercado de velhinhos simpáticos vendedores de jujubas inúteis, ovacionados por felizes sobreviventes sortudos é, exatamente, o protocolo de testes pré-clínicos e clínicos, testes que permitem, primeiro, identificar propostas de tratamento merecedoras de maior atenção e, depois, distinguir entre os efeitos que realmente podem ser atribuídos ao tratamento e interferências várias, como idade do paciente, dieta, sexo, estilo de vida, outros remédios, acaso -- e, crucialmente, fazem o registro da proporção real das pessoas que melhoram, e quantas são as que pioram. Assim, os mortos não são varridos para debaixo do tapete e apagados da história. 


Quem disse que é "fosfo"?

Uma questão que parece ter passado despercebida, nessa confusão toda, é: como as pessoas que dizem ter melhorado tomando "fosfo" sabem que tomaram mesmo fosfoetanolamina e não "jujubas"? Aliás, como se sabe que o processo, cuja patente foi requisitada por Gilberto Chierice e outros em 2008, produz mesmo fosfoetanolamina? E com 90% (ou mais) de pureza?

Não são perguntas inúteis ou maliciosas: fora o princípio geral da ética científica nullius in verba (não se aceita a palavra de ninguém sem provas), a verdade é que a análise do conteúdo das cápsulas da USP, realizada no Laboratório de Química Orgânica Sintética (LQOS) da Unicamp, trouxe resultados vexatórios: o material era apenas 32% "fosfo". Essa conclusão foi contestada com acusações de incompetência (os químicos da Unicamp teriam confundido subprodutos da análise com os resultados propriamente ditos) e má-fé (em audiência recente no Senado, Chierice disse que os dados da Unicamp haviam sido "subornados"; supõe-se que quisesse dizer, "adulterados").

A análise da Unicamp foi executada por meio de espectroscopia de ressonância magnética nuclear (RMN), uma técnica que se vale das propriedades magnéticas de certos núcleos atômicos. Não há nenhuma decomposição química envolvida e, o que é ainda mais crucial, trata-se de uma técnica-padrão, amplamente utilizada para a caracterização da estrutura de compostos orgânicos.

Menos divulgado entre o público em geral foi o teste realizado, pelo mesmo laboratório, dos procedimentos descritos no pedido de patente de 2008, "Nova Metodologia de Síntese de Fosfoetanolamina". Esse teste consta da "Parte B" do relatório entregue pelo LQOS ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), cuja "Parte A" consiste da análise do conteúdo das pílulas de São Carlos. 

O resultado: um rendimento de fosfoetanolamina da ordem de 40%, bem abaixo dos 90% prometidos na patente, e um amplo cardápio de resíduos, incluindo fosfobisetanolamina e monoetanolamina, dois contaminantes também encontrados -- talvez não por acaso -- nas cápsulas.

Para caraterizar o produto de sua reação e cravar os 90% de pureza, os autores do pedido de patente afirmam ter usado espectroscopia de infravermelho, uma técnica mais rudimentar e de menor definição que a RMN. O relatório da Unicamp se refere à espectroscopia de infravermelho como "uma técnica obsoleta no que diz respeito a (...) elucidação estrutural e grau de pureza de compostos orgânicos".

Resumindo, a técnica usada pela Unicamp para afirmar que o pó de São Carlos é só 30% fosfoetanolamina é mais moderna e tem melhor poder definição do que a usada pelo grupo de São Carlos para dizer que se trata de 90% "fosfo". Essa é uma contradição que põe em dúvida o que seria, afinal, a suposta "fosfoetanolamina sintética" usada nos estudos publicados pelo grupo de Chierice em periódicos internacionais.

#TeamFosfo?

Uma alma caridosa poderia, neste ponto, supor que o que se configura aí é uma disputa entre pontos de vista, dois grupos de especialistas discordando entre si, #TeamFosfo versus #TeamUnicamp, mas então chega a hora de avaliar credibilidades. E aí é preciso levar em conta a extrema informalidade -- pode ser que alguém prefira uma palavra mais forte, como "desleixo" -- com que o #TeamFosfo tem se comportado ao longo das últimas décadas. 

Primeiro, vamos lembrar as péssimas condições do laboratório em que a "fosfo" era produzida, condições impróprias para o preparo de material para consumo humano. Segundo, a distribuição indiscriminada e ilegal das pílulas, sem nenhum respaldo científico, durante anos a fio. Terceiro, que a análise da Unicamp revelou (e esse dado não foi contestado) que o peso das cápsulas é inconsistente: a embalagem fala em 500 mg, mas o conteúdo real oscilava entre 300 mg e 400 mg, ou de 20% a 40% menos que o declarado. Quarto, a confusão em torno dos testes que talvez tenham, talvez não tenham sido realizados em Jaú (SP) e que, se realmente existiram, acabaram sendo desperdiçados; e o suposto contato com a Anvisa, que a agência nega.

Quinto, o aconselhamento irresponsável para que as pessoas cessem com os tratamentos tradicionais, registrado em pelo menos duas oportunidades, em entrevistas concedidas por Chierice à revista Época e à afiliada da Globo EPTV. Reproduzo as falas, ipsis litteris, abaixo, em itálico:

"Chierice, o “pai” da fosfo, confirma essa orientação perigosa. “Em pacientes em quimioterapia não funciona porque o sistema de defesa do corpo deve estar fortalecido”, diz, sem ter nenhum estudo publicado que comprove a afirmação. (Época)"
"Tem alguma contraindicação? A cápsula tem que ser ingerida antes de a pessoa fazer quimioterapia?
Não existe “antes” porque ela não funciona como coadjuvante. Se você detona o sistema imunológico da pessoa, os resultados não são bons porque a ação da fosfoamina necessita que o sistema imunológico esteja intacto. Se existir uma quimioterapia que não destrói o sistema imunológico, perfeito, pode ser combinado. (EPTV)"
Sexto, a incapacidade dos proponentes da fosfoetanolamina em, sequer, concordar quanto aos efeitos esperados da substância. Enquanto Chierice não se esquiva de prometer a cura do câncer -- qualquer câncer -- e sugere a dispensa da quimioterapia, o pesquisador Durvanei Maria, seu coautor em pelo menos meia dúzia de estudos sobre a molécula, afirma que "nunca falei em cura, e nunca falei em supressão da quimioterapia ou radioterapia".

Contradizendo diretamente as declarações do "pai da fosfo" à EPTV ("ela não funciona como coadjuvante"), Durvanei disse ao jornalista Herton Escobar, de O Estado de S. Paulo, que vê a fosfoetanolamina sintética como "adjuvante aos tratamentos que já existem". O único ponto em que ambos parecem de acordo é em contestar os resultados dos grupos de trabalho do MCTI por via política, judicial e na opinião pública, mas não no campo científico.

Concentrações

Durvanei queixou-se, por meio de nota, de que as concentrações usadas pelos laboratórios contratados pelo MCTI para testar a viabilidade da fosfoetanolamina in vitro -- isto é, contra culturas de células -- foram muito mais baixas do que as apontadas nos artigos publicados por seu grupo (o mais recente, creio, é este aqui). Assim, fica a crítica/insinuação de que os estudos do MCTI foram deliberadamente mal feitos, talvez para "sabotar" a molécula.

Mas é difícil ver procedência na objeção. O artigo linkado acima, publicado em 2013 pela equipe de Chierice e Durvanei no British Journal of Cancer (BJC), aponta atividade citotóxica (capacidade de matar células) da "fosfo" contra três linhagens de leucemia, in vitro, a concentrações de 6 mM, 9 mM e 12 mM. Essas letras, "mM",  representam "milimolar", ou milésimos de molar. O estudo realizado na Universidade Federal do Ceará (UFC) usando a "fosfoetanolamina sintética" de São Carlos -- que, como vimos a partir das análises químicas realizadas na Unicamp, de fosfoetanolamina real tem quase nada -- mostrou citotoxicidade a concentrações variando de 8,6 mM a 75,9 mM, ou seja, maiores até que as usadas pelo grupo original, e consistentes, em seu limite inferior, com os números apresentados no BJC. 

O que o relatório da Federal do Ceará aponta é que, por critérios internacionais, só se consideram verdadeiramente citotóxicas contra o câncer substâncias que sejam eficazes, in vitro, na escala micromolar, ou seja, mil vezes menor que a necessária para que a "fosfo" de São Carlos comece a mostrar serviço. Não se trata de um critério arbitrário: parte da constatação de que, dadas concentrações suficientemente altas, qualquer coisa pode matar células de câncer numa bancada de laboratório. 

Um segundo trabalho, do CIEnP (Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos, uma entidade privada), buscou testar, separadamente, a citotoxicidade da fosfoetanolamina pura (pura mesmo, não a mixórdia de São Carlos) e dos dois contaminantes principais detectados pela Unicamp, a fosfobisetanolamina e a monoetanolamina. Durvanei reclama que esses ensaios usaram concentrações de  escala micromolar (designada por "µM"), e não milimolar, como recomendado nos artigos de seu grupo.

Aristóteles ou Galileu?

O primeiro ponto a ser levantado aqui é que a escala micromolar representa o padrão internacional para testes de citotoxicidade contra o câncer (há compostos que se mostram eficazes até em escala nanomolar). O segundo é que, mesmo usando essa escala, o CIEnP  foi generoso, indo de 100 µM a 10.000 µM, o que representa de 0,1 mM a 10 mM, faixa que inclui a concentração eficaz mais baixa apontada pelo artigo no BJC (6 mM), e cujo limite superior é até maior que a média das concentrações descritas ali (9 mM). Nesses testes, a fosfoetanolamina pura se mostrou inútil, mas um dos contaminantes (a  monoetanolamina) teve atividade contra as células de câncer.

Tomados em conjunto, os trabalhos da Unicamp, da UFC e do CIEnP apontam, de modo enfático, para a hipótese de que as "pílulas milagrosas" de São Carlos só "funcionam" em algum sentido objetivo -- e, ainda assim, de modo muito marginal -- porque são mal feitas. Fácil imaginar que essa conclusão não caia bem com seus inventores, investidores e propagandeadores.

O biólogo britânico Peter Medawar (1915-1987), ganhador do Nobel de Medicina, distinguia três tipos de experimentação supostamente "científica": o modelo aristotélico, em que já se tem uma certeza formada e buscam-se exemplos para sustentá-la; o baconiano, em que  experimentos são realizados mais ou menos ao acaso, só para ver o que acontece; e o galileano, em que se tem uma hipótese prévia, uma ideia, e realizam-se experimentos para testá-la.

Medawar afirmava que apenas o molde galileano é realmente científico. O que parece é que os propositores da fosfoetanolamina gostariam de ver o MCTI regredir à modalidade aristotélica, hoje uma marca das pseudociências.

Comentários

  1. Muito bom texto. Eu inicialmente achava que o #TeamFosfo era somente confuso. Ciência de má qualidade. Hoje suspeito que muito pior que isso, eles vêm agindo de má fé há muito tempo. Mas como em todas essas fraudes, a resposta pode demorar mas chega.
    Curiosidade: Peter Medawar nasceu e viveu até os 15 anos no Brasil. Perdeu a cidadania brasileira aos 18 anos por se recusar a fazer serviço militar.

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