Mitos sobre a violência

"A violência é o último refúgio do incompetente", diz Isaac Asimov pela boca de um dos protagonistas de sua série de romances Fundação. Como toda frase de efeito, o dito asimoviano deixa de contemplar nuances: acusar uma pessoa que luta pela própria vida ou contra um regime tirânico, por exemplo, de "incompetência" pode até ser justificado, em certas circunstâncias, mas dificilmente será a melhor avaliação possível do que ocorre. No entanto, notícias como a da invasão do Instituto Royal ou do quase linchamento do coronel da PM paulista mostram que a sabedoria de Asimov continua a encontrar amplo espaço de aplicação.

É importante notar que as soi-disant "forças da ordem"  não vêm mostrando, também, nenhuma relutância em buscar esse último refúgio, e que é a avidez com que o procuram que acaba emprestando, aos depredadores e agressores "civis", a pálida aura de legitimidade com que tentam revestir-se -- aura que também se ampara en mitos, alguns propalados por gente que deveria saber melhor, e que por isso mesmo precisam ser expostos. Entre eles, estão:

"Nenhuma transformação social real jamais aconteceu sem violência"

 Mesmo supondo que isso seja verdade: e daí? Onde está a linha lógica que diz que, porque tem sido assim, tem de continuar a ser assim? Mais importante, nas democracias da segunda metade do século passado, em que casos a violência foi realmente necessária para produzir alguma mudança significativa para melhor, e em que casos foi contraproducente, ou mesmo instrumento de retrocesso?

Argumentando na mesma linha, também dá para dizer que nenhuma grande civilização jamais foi construída sem ampla depredação ambiental e uso de trabalho escravo. Vamos, portanto, endeusar o pior do obscurantismo ruralista como o "black bloc" do processo civilizatório?

"Destruir propriedade não se compara a agredir uma pessoa"

Destruir propriedade é agredir uma pessoa, ou pessoas: o proprietário, o usuário, o contribuinte (no caso de um bem público). Toda propriedade é fruto do trabalho de alguém, de tempo gasto e esforço. Quando trabalho humano é desperdiçado, alguém, cedo ou tarde, sofre, porque recursos escassos estão sendo consumidos em reparos que deveriam ser desnecessários. Destruição de propriedade não é uma violência sem vítimas: só acontece de as vítimas não aparecerem sangrando na hora, diante das câmeras.

"A violência nas manifestações não é vandalismo, é um gesto político"

Atentados terroristas e assassinatos de autoridades também são "gestos políticos", mas nem por isso deixam de ser terrorismo e assassinato. Existe uma diferença, que algumas pessoas não são capazes de -- ou não querem -- ver entre o que é um recurso político legítimo numa democracia e num regime de exceção. Toda a rationale da democracia, aliás, gira em torno do pressuposto de que deve ser possível fazer política sem recurso à violência.

Comentários

  1. É uma situação que necessita evoluir, mas para evoluir tem que trabalhar as raízes, e as raízes é a EDUCAÇÃO. Assim, até hoje lamentavelmente e muito infelizmente ninguém conseguiu "fritar ovos sem quebrá-los", portanto, vandalismo, violência é raiz de exemplos autoritários de governo corruptos e impunes, de profundo descaso com seu povo, É corrupção, impunidade, é injustiças em cima de injustiças, sem defender ninguém e muito menos ser a favor desse vandalismo e violência, digo apenas repito é preciso trabalhar a raiz para que o povo veja e sinta o quão tem valor! Começando com respeito aos animais não humanos, a raiz principal!

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  2. A destruição de propriedade privada causa danos sim, mas não dá pra comparar um banco - que lucra 20bi - tendo que gastar 100mil, com a perda de uma vida. Nem se fossem 100mi.

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    1. Oi, Anônimo, foi por isso que escrevi "agredir", não "matar". Claro que, entre destruir um carro e matar uma pessoa, destruir o carro é menos ruim, mas ao destruir o carro você também está prejudicando pessoas: pode estar impedindo alguém de trabalhar, de chegar a um hospital, etc.

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  3. "Que nossas dores jamais possam servir de desculpas para atitudes violentas!
    O outro não deve ser o meu rumo para decisões, só a mim cabe refletir e decidir o melhor!
    Fazer valer a força é justiça ou vingança?
    Se queremos construir um futuro melhor, porque destruir o que existe gastando os recursos que poderiam melhorar ou edificar o presente?
    Qual a proposta da minha dor causar dor no outro, principalmente naquele que não convivo, não conheço e nem sei suas lutas e sacrifícios para obter seus bens e tentar sobreviver com sua família assim como eu?
    Acredito que nossas dores estão nos dando "razões" para atacar o outro de várias formas quando queremos ser amados e respeitados! Precisamos refletir no que estamos ensinando aos nossos, pois o futuro depende do presente e o presente é feito de nossas lutas íntimas e de suores, mas ainda, o maior valor está na vida digna, no respeito ao outro e isto também é educação para uma qualidade de vida!
    Que nossa bandeira traga a paz usando corretamente nossos direitos, sabendo que todo direito nos traz um dever a realizar!!
    Tenham uma boa semana!

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  4. Todo mundo defende black bloc até o dia em que destroem seu carro.

    []s,

    Roberto Takata

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  5. O pior é quando quebram os ovos e não fritam nenhum.

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  6. É complicado comparar os tipos de violência. Quando a PM matou o jovem na Zona Norte de São Paulo, a população foi às ruas e depredou carros e ônibus. Chamaram estas pessoas de Black Blocs, como se casos semelhantes nunca tivessem acontecido (infelizmente é comum ter jovens executados pela PM). Nas periferias a juventude sofre com vários tipos de violência. Penso que, para um jovem desses, quebrar uma agência bancária não é nada comparado ao que vivem diariamente. Quanto ao coronel da PM agredido, aquilo não foi nada. Se fossem pessoas violentas, e se esta violência fosse real, o coronel não sairia vivo dali. Imagine o mesmo coronel no meio de uma rebelião em um presídio. Doeu mais no ego do que no corpo. No mais, com ou sem violência, tudo continua como antes: Cabral segue no RJ, Alckmin continua negando o episódio da Siemens, legislativo continua sem fazer merda nenhuma e o executivo segue se preparando para as eleições.

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  7. O uso da propriedade sem a efetivação de sua função social é uma violência contra nosso Estado Democrático de Direito.
    A violência tem várias faces...

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