Tarados por um segredo

Pessoalmente acho que já há blogs demais tratando de política no Brasil, mas como a questão das liberdades de informação e expressão me interessa profundamente, decidi abrir uma exceção temática por aqui e fazer uma postagem a respeito da paixão, quase que soviética, pelo segredo de Estado que parece ter se apossado do governo brasileiro.

Primeiro, a questão do "sigilo eterno" dos documentos ultrassecretos. Se entendi direito, a preocupação seria com a reação de países vizinhos ao comportamento do Brasil em situações como a anexação do Acre e a Guerra do Paraguai.

Não sei exatamente o que dizer desse argumento -- se devo encará-lo como dissimulação canhestra (isto é, o que se pretende esconder é na verdade outra coisa) ou se como um indicador real do tipo de visão de mundo que nossos líderes têm. Difícil saber qual a situação mais assustadora.

Digo, quando eu estava no ensino médio a Dona Berenice, nossa professora de História do Brasil, já ensinava que a tomada do Acre da Bolívia tinha sido uma tremenda sacanagem, e que o Conde d'Eu, marido da Princesa Isabel, cometera atrocidades inomináveis no Paraguai. Dona Berenice estava revelando segredos de Estado para uma cambada de moleques pré-vestibulandos? Uau.

Para ver como países civilizados lidam com os esqueletos que mantêm no armário, em novembro do ano passado o presidente dos EUA, Barack Obama, desculpou-se publicamente por experimentos médicos antiéticos realizados com patrocínio americano na Guatemala, nos anos 40.

Aliás, a Lei de Liberdade da Informação dos EUA é algo que os congressistas brasileiros poderiam estudar. Qualquer cidadão americano pode requisitar documentos oficiais. Caso se recuse a liberá-los, o órgão responsável precisa apresentar uma justificativa, que pode ser contestada no Judiciário (aqui você encontra uma lista de contestações ao FOIA que chegaram à Suprema Corte, que lá lida com coisas mais importantes do que o tamanho da pena de um assassino confesso).

Para reduzir os custos com cópias e divulgações seguidas do mesmo material, vários órgãos, incluindo o FBI, criaram páginas na internet onde todo o material liberado via FOIA está disponível para quem quiser.

Imagino que a cúpula do governo Dilma deve recuar em horror diante da ideia, como um vampiro confrontado com a luz do Sol.

A questão do direito do contribuinte indefesso a acessar informação oficial me traz à segunda paixonite governamental pelo segredo: a tentativa de tornar secretas as estimativas de custo das obras da Copa.

Neste caso, a desculpa dada -- que tornar públicos os orçamentos facilita a formação de cartel por empreiteiras -- além de ser francamente estúpida (se as empresas realmente precisarem ter acesso ao orçamento para cartelizar o processo, o que as impede de, por exemplo, corromper um funcionário com acesso aos números?) reflete um comportamento típico do Estado brasileiro: sempre que confrontada com a própria incompetência, a primeira reação da autoridade é violar os direitos do cidadão.

Este é, diga-se, um cacoete multipartidário: que ninguém se esqueça de que a primeira reação do governo tucano de São Paulo, quando o alto grau de articulação do PCC explodiu na cara das autoridades desapercebidas, em 2002, foi tentar proibir os telefones celulares pré-pagos.

Agora, confessando-se incapaz de impor as leis de defesa da concorrência, o governo federal tenta suprimir o direito do cidadão à informação. A justificativa é de que a Constituição permite manter informações públicas em sigilo em determinados casos. A Constituição também permite a aplicação da pena de morte em certos casos, mas e daí?

No fim, o diagnóstico de Millôr Fernandes ainda me parece o mais preciso: o Brasil é uma tentativa de se construir uma democracia desprovida de democratas.

Comentários

  1. Magistral o comentário do Millôr...

    E lamentável ver o estado da nossa democracia. Temos eleições diretas e somos uma república constitucional, sim, e podemos falar sobre um monte de coisas. Mas e quando um jornal tenta mostrar os podres de um certo cacique político octogenário? E quando um outro jornal tenta censurar um blog-sátira? E quando um blogueiro televisivo famoso ameaça processar outra blogueira por "calúnia"?

    Na verdade, na verdade, vivemos numa mal-disfarçada aristocracia republicana onde a liberdade de expressão vive ameaçada por egos inflados e onde a transparência é uma piada de mau gosto.

    Bah. Humbug!

    -Daniel Bezerra

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