Mitos da criação

A postagem de ontem sobre os livros de Stephen Hawking e Brian Geeene já ia muito longa, e acabei deixando de lado a ideia de incluir nela uma breve resenha do mito judaico-cristão da criação do Universo, à guisa de contraste com a versão científica apresentada pelos dois autores. Então, ei-la aqui.

Uma primeira coisa que é preciso pôr em perspectiva é a profundidade do tempo histórico. Muita gente deve achar (eu achei, durante muito tempo) que a narrativa bíblica de Yahweh chamando Abrão para fora de Ur "dos Caldeus" (explico as aspas mais à frente) referia-se a algo ocorrido nos primórdios da civilização. Ledo engano.

Se Abrão realmente existiu, sua jornada de iluminação teria começado num momento em que a civilização suméria tinha pelo menos 1.500 anos, o Egito era um país unificado há 1.100, e Sargão da Acádia, fundador do que talvez tenha sido o primeiro grande império conhecido, era já uma figura histórica, tão distante do presente de então quanto D. Pedro I está distante de nós.

Isso significa, basicamente, que o mito da criação legado por Abrão a seus descendentes não surgiu num vácuo. Da mesma forma que seria difícil alguém fundar uma religião nova no mundo ocidental, hoje, ignorando dois milênios de tradição cristã, o mito que acabou codificado no Gênese bebeu profusamente a cultura circundante.

(A expressão "dois milênios de tradição cristã", quando invocada em termos de reverência e autoridade, sempre me faz sorrir: a "tradição suméria" durou 5.000 anos, com o sumério servindo de língua religiosa, literária e científica oficial da Mesopotâmia da aurora da civilização até o primeiro século EC, e hoje só o que resta dela são tabuinhas de barro.)


O mito mesopotâmico da criação passou por várias versões, mudando junto com a política (a identidade do deus-criador e as relações dentro do panteão variando de acordo com as alianças e o equilíbrio de poder entre as cidades-Estado) e a sociedade (nas versões mais antigas, o mundo "nasce" de uma deusa fêmea; conforme a tecnologia -- ferramentas, armas, cerâmica, etc. -- avança, ele passa a ser "feito" por um deus macho).

A criação do homem muitas vezes envolve um casal de deuses, onde o deus macho mata uma outra divindade ou demônio e mistura seu sangue à terra, e uma deusa usa a lama produzida dessa forma para moldar os primeiros seres humanos. Mesmo Yahweh, no princípio, tinha uma esposa, Asherah (imagem ao lado).

A criação do Universo, por sua vez, envolve uma batalha entre um emissário dos deuses da Ordem e uma personificação do Caos, geralmente representada como um monstro marinho -- sendo que o Caos em si é o oceano, as profundezas, o abismo.

(Fãs de RPG em geral e do desenho animado Caverna do Dragão, em particular, podem achar curioso saber que o dragão do caos é chamado de Tiamat -- que aparece, em versão original, na ilustarção ao lado).

O deus da Ordem (Marduk, na versão babilônica do mito) mata Tiamat e usa seu corpo para separar as águas -- isto é, o caos primordial -- em duas partes, as águas do firmamento e as águas sob a terra.

Qualquer semelhança com os versos de Gênese I:6-7:




6. Deus disse: "Faça-se um firmamento entre as águas, e separe ele umas das outras". 7. Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento daquelas que estavam por cima.




Não é mera coincidência.

Já que chegamos ao livro do Gênese, vale a pena lembrar que essa narrativa contém duas versões para a criação do Universo, mutuamente incompatíveis. Uma delas, a do primeiro capítulo, traz a sequência de seis dias da criação, culminando com a raça humana (homens e mulheres juntos) no sexto dia. A do segundo capítulo começa com Adão sendo feito de barro na terra ainda vazia, as plantas e os animais em seguida e Eva, por último.

A hipótese histórica mais aceita é a de que o Gênese foi composto a partir da fusão de dois textos, um originário do reino de Israel e outro, do reino de Judá.

A fusão teria ocorrido depois da destruição de Israel pelos assírios, por volta de 720 AEC, quando refugiados fugiram para Judá, levando sua mitologia consigo. Isso tudo, 800 anos depois do tempo em que teria vivido Moisés -- a quem a autoria da narrativa é tradicionalmente atribuída -- e 1.300 anos depois de Abrão.

Como se pode afirmar isso? Voltando à Ur "dos Caldeus" de que falei acima: no tempo em que a Palestina estava dividida em dois reinos, Judá e Israel, após a monarquia unificada de Davi e Salomão dar com os burros n'água, a cidade de Ur realmente estava sob o domínio caldeu. Mas no tempo de Abrão ou no de Moisés, ela teria sido dos sumérios, ou talvez dos acádios. Caldeus, não. Atribuir a expressão "Ur dos Caldeus" a Moisés é uma gafe comparável a atribuir a Pero Vaz de Caminha  um texto no qual o porto de chegada de Cabral é chamado de "Porto Seguro, no Estado da Bahia".

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