A guerra do quilo

O website da revista Nature traz uma interessante reportagem sobre os debates em torno da definição do quilograma. Ao contrário de outras unidades fundamentais, como o segundo ou o metro, o quilo ainda não tem uma definição tirada diretamente das leis da natureza: um quilo é definido, oficialmente, como a massa de um pedaço de metal mantido num cofre em Sèvres, na França (e que você vê ao lado).

Essa definição, digamos, empírica é um tanto quanto complicada: como diz o texto da Nature, se o bloco-padrão perder uma lasca de, digamos, um grama, todos os outros quilos do mundo passarão automaticamente, e por definição, a pesar na verdade 1,001 kg.  Imagine a confusão na fila do pãozinho.

(Sim, estou misturando vergonhosamente os conceitos de massa e peso. Desculpas aos puristas.)

A situação do quilo é bastante primitiva se comparada à do segundo -- definido como o tempo consumido numa série de vibrações de um átomo de césio -- e do metro, definido como o espaço percorrido por um raio de luz numa fração específica de segundo.

Como as propriedades dos átomos de césio e a velocidade da luz no vácuo são universais, não é preciso amarrar a unidade fundamental de distância a um "bastão  fundamental" que poderia se expandir, contrair ou quebrar, e nem a do tempo a um "relógio absoluto" que pudesse ficar sem corda ou bateria.

De acordo com a Nature, nesta semana, durante uma reunião realizada em Londres, surgiu uma proposta escandalosa e herética de redefinição do quilo: Richard Davis, ex-chefe de massa do Bureau Internacional de Pesos e Medidas, sugeriu que o quilo passasse a ser definido como uma média de duas medições.

Uma média. Não uma lei na natureza, mas uma ficção matemática. Um dado estatístico.

O motivo é que os dois projetos mais avançados de se amarrar o quilo à natureza fundamental do Universo estão produzindo resultados divergentes.

Um deles (e que, confesso, é o meu favorito) usa uma esfera cristalina e tenta definir o quilo como a massa de um número específico de átomos de silício. O outro se vale de uma balança que funciona por meio de campos elétricos e magnéticos, o que permitiria ligar o quilo a constantes fundamentais da mecânica quântica.

O problema é que as duas medições do quilo -- de número de átomos e de efeito sobre campos eletromagnéticos -- estão num desacordo de 175 partes por bilhão. É como se todas as pessoas sobre a face da Terra votassem a favor de uma medida (digamos, colonizar Marte) mas 1.225 pessoas, ou 0,00002% da população,  fossem contra.

Essa divergência é menor que a chance de o asteroide mais perigoso registrado no momento pela Nasa, 2009 FD -- com 130 metros de diâmetro, massa de 3 milhões de toneladas e uma energia de impacto de 120 megatons --  tem de colidir com a Terra (0,25%, entre 2185 e 2190).  E você não vê cientistas arrancando os cabelos por causa disso.

O quilo, no entanto, é uma questão mais delicada. Principalmente porque sua definição vai afetar o valor de algumas constantes fundamentais da natureza, como a massa do próton. Faz sentido usar uma média para determinar que valor dar a uma série importantíssima de dados concretos, que são medidos diretamente?

Há quem nutra a esperança de que os resultados balança eletromagnética e da contagem de átomos venha a convergir ainda mais, e torne o recurso à média desnecessário. Mas é curioso notar que, no fim, todas as melhores medições que fazemos são, de fato, estatísticas.

Pense, por exemplo, numa pessoa que se pesa várias vezes ao dia, e obtém resultados levemente divergentes a cada momento (porque acabou de comer, ou de usar o banheiro, ou de fazer uma caminhada, etc.). O que estaria mais perto de seu peso real: um dos resultados individuais da balança, ou uma média de todas as leituras?

Comentários

  1. Faltou só citar a fonte do texto, ne? Lembro de ter lido isso na Scientific American.

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  2. Marcelo, a fonte da história está citada lá na primeira linha: é o site da Nature. Já o texto aqui no blog é meu, mesmo.

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